terça-feira, 28 de abril de 2009

O que fica do marxismo (V)


Alaor Barbosa


28/04/2009
As lutas entre as classes sociais se ferem por causa de necessidades objetivas e das consequentes reivindicações resistidas. Até o advento da Era Industrial, com a formação do capitalismo industrial moderno (segunda metade do século XVIII na Inglaterra e nos cem anos seguintes no restante da Europa do Norte), as reivindicações eram antes expressões de angústia e desespero do que metas e objetivos conscientemente determinados. A partir da Revolução Industrial, as classes assalariadas entraram a reivindicar com bastante consciência das suas necessidades imediatas, embora com precária consciência política. Esta desenvolveu-se aos poucos, mercê das numerosas ideias que surgiram a respeito da situação e do futuro dos trabalhadores. Ideias pensadas por filósofos, políticos, ideólogos, sonhadores de várias espécies. Muitos deles, sublinhe-se, pertencentes (para honra da espécie humana) a classes abastadas. Basta citar o caso de Robert Owen, um industrial inglês, um dos chamados “socialistas utópicos” da época, considerado o pai do socialismo na Inglaterra: sem dúvida, um dos homens mais admiráveis de todos os tempos, por suas ideias e iniciativas práticas no mais alto grau generosas, em que foi apoiado mesmo, também, por gente das classes dominantes da Grã-Bretanha. Nessa época, tornaram-se comuns e discutidíssimos os ideais socialistas e comunistas, que se propunham resolver o descomunal e candentíssimo problema das condições insuportavelmente miseráveis da vida das classes obreiras e a reorganizar a vida social em bases novas, humanitárias, igualitárias: justas. No ambiente sócio-político-econômico da Europa Ocidental da primeira metade do século XIX, em grande parte como resultado da Revolução Francesa de 1789-1794, os debates ideológicos cruzavam o ar e agitavam os espíritos intensissimamente. Marx não anunciou novidade alguma, quando se pôs a falar de comunismo, exceto quanto ao caráter científico que atribuiu ao comunismo que formulou.
Como sabemos, muitos dos conflitos sociais aguçados naquela época continuam não bem resolvidos até hoje. Mas alguns foram, sim, resolvidos, por meio da dialética da reivindicação e do atendimento - quase sempre parcial e adiado – da reivindicação. Assim foi a reivindicação do direito de fundar sindicatos, da limitação da jornada de trabalho, do direito dos operários de votar e serem votados, da proibição do trabalho de menores de certa idade, da proibição do trabalho noturno em determinadas condições, da regulação do trabalho da mulher gestante, do direito a férias remuneradas, do direito a estabilidade no emprego, da participação dos trabalhadores no lucro das empresas, enfim, todo o elenco dos direitos dos trabalhadores, a partir de certa época inscrito até mesmo na Constituição de alguns Estados. O primeiro Estado a fazê-lo foi o México.
Pode-se dizer que o atendimento às reivindicações dos trabalhadores tem sido o motor do desenvolvimento das sociedades modernas ocidentais. E nesse ponto o marxismo tinha razão: o atendimento às necessidades das classes trabalhadoras constitui o atendimento às necessidades da sociedade inteira. Tudo o que beneficie os trabalhadores beneficia a sociedade toda.
Terceira reflexão crítica sobre o Marxismo. Muito depressa eu rejeitei a ideia da necessidade (no sentido filosófico deste termo) da violência como instrumento e modo de solução dos conflitos entre as classes sociais. Esta é uma concepção em que Marx e Engels coincidem com a visão-de-mundo – da vida, da natureza, do homem – de Charles Darwin. Darwin verificou que, na natureza, na luta pela sobrevivência vencem os mais aptos e os mais fortes. Trata-se de um fato, digamos, de ordem biológica – alheio, pois, a considerações de ordem moral e psicológica. Fato da natureza é fato da natureza: não importa se justo ou injusto, bom ou mau, moral ou imoral. A ninguém ocorre julgar injusto ou imoral o ato de um leão caçar e comer um animal de outra espécie a fim de se alimentar. Acontece que o homem é um ente dotado de consciência – de alma, digamos – e precisa de viver de acordo com preceitos morais e jurídicos. A observância de preceitos morais e jurídicos é, para os homens, um imperativo de sobrevivência e de possibilidade de convivência. Esse imperativo suplanta e afasta a violência como método de solução de conflitos entre indivíduos e entre classes – e entre tribos e entre nações e povos: é um fundamento para a rejeição da guerra entre os homens. A democracia constitui, pois, uma conquista política, moral e jurídica da humanidade. A aceitação ou mesmo preconização da violência como meio inevitável de solução dos conflitos entre as classes decorreu, presumivelmente, da justa indignação e revolta, provocadas em todo homem de bem, e que Marx e Engels naturalmente sentiam, diante do panorama de miséria e de exploração impiedosa das numerosas classes de trabalhadores assalariados da Europa industrializada. Além disso, a violência era – e é – uma lição da história: ela tem sido norma predominante no processo de solução dos conflitos internos das sociedades humanas. Marx e Engels fizeram do fato norma. Mas a humanidade vem, desde sempre, repito, procurando eliminar a violência na solução dos seus conflitos. As lutas pela instauração e vigência de modos, técnicas e métodos democráticos na solução dos dilemas políticos têm sido uma realidade constante na história e um dos dados do esforço (nem sempre bem-sucedido) de autoaperfeiçoamento dos homens. Essas lutas constituem o tecido mesmo da história do esforço humano de conquista da democracia. Os próprios embates provocados pelas reivindicações socialistas trouxeram à humanidade a lição de que fora da democracia não há salvação. (Continua.)
Alaor Barbosa é jornalista, advogado (do Instituto dos Advogados Brasileiros) e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da Associação Nacional de Escritores e da UBE/SP/G0
Fonte: DM

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