22/02/2010
A mídia descobriu, pela enésima vez, a "amnésia eleitoral". O Instituto Data Rio divulgou dados que mostram que somente 4% dos votantes sabiam em quem votaram para deputado federal e, em igual percentagem, para deputado estadual. Embora exista uma clara correlação entre nível educacional e lembrança, um comentarista dos dados, Pedro Fernandes, nos lembra de que 53% dos que possuem educação superior não se lembravam em quem votaram — segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Fernandes lembra a responsabilidade dos políticos, que contribuiriam para o esquecimento.
Sem dúvida; porém, outros fatores pesam. A experiência dos estudos policiais e criminológicos mostra que, nos alinhamentos para identificação de testemunhas, o número de pessoas colocadas no alinhamento influencia o resultado. O número conta: quanto maior, mais erros. Experimentos desse tipo minaram a fé na prova testemunhal. Fica pior: brancos identificando negros erram mais do que brancos identificando brancos, provando que há um aspecto relacional que afeta a qualidade do testemunho. A identificação funciona melhor entre semelhantes.
O esquecimento eleitoral não opera num vácuo de instituições. As instituições e as legislações eleitoral e partidárias podem facilitar ou dificultar o esquecimento. No Brasil, facilitam.
A "amnésia eleitoral" não começa depois das eleições: começa antes. Há dois anos, Jairo Nicolau (Iuperj) alertava para pesquisas feitas pelo Ibope e pelo Datafolha, em grandes capitais, próxima das eleições: "o percentual de eleitores que disseram não saber em quem votar na pergunta espontânea, em algumas das capitais... é muito alto, oscilando entre cerca de 30% e 80%." Os dados permitiam concluir que o problema era nacional e não do nosso Rio. Com 66%, estávamos próximos do Recife (58%); de Porto Alegre (61%) e abaixo de Belo Horizonte (79%). Não sabiam em quem votariam, deixando ver que não havia uma relação forte com candidato ou com partido.
O sistema eleitoral se impõe como variável invisível, mas de muito peso, sobre a memória do votante. O sistema partidário também pesa sobre os resultados. Além da amnésia individual, há uma amnésia partidária.
A permanência dos políticos num só partido favorece a identificação, por parte da população. Porém, os políticos mudam muito de partido. Como exemplo, o ex-governador Garotinho, se bem me lembro, já esteve no PDT, no PT, no PSB, PMDB e atualmente milita no PR. A pouca significação dos partidos não é um fenômeno obrigatório, da natureza, mas consequência da pouca significação atribuída a eles por parte significativa dos políticos.
O alto número de partidos e de candidatos por vaga conspira contra o voto responsável e contra a memória. Ari Ferreira de Queiroz, em interessante artigo, comenta que, em Goiânia, em 2004, concorreram às eleições para vereador nada menos do que 27 partidos, coligados ou não. É o esfarelamento partidário. Desses, 13 não elegeram ninguém. Quantos desses 27 comandam uma parcela significativa das identificações e preferências do eleitorado? Não são partidos políticos; são legendas de aluguel. Havia vinte candidatos para cada vaga de vereador, mas somente quatro candidatos a prefeito. Fica pior: o artigo 10 da Lei das Eleições estabelece que cada partido pode registrar até 150% do número de cadeiras disponíveis na Câmara Municipal. É uma aberração aritmética que permite a um hipotético partido receber todos os votos e deixar de eleger um terço dos candidatos que apresentou.
No segundo turno das eleições majoritárias há somente dois candidatos e a memória é superior.
O olhar institucional não termina aí: ainda é fácil trocar de partido. Nosso sistema pensou os mandatos como propriedade do eleito e não do partido que o elegeu. Houve mudança legislativa para reduzir a migração que, eleição trás eleição, se observa na direção do Executivo. Porém, acordos internos esvaziaram essa legislação benéfica. Esses acordos anulam a oposição, enfraquecem o Legislativo, e fortalecem o Executivo.
Fica ainda pior: mesmo sem migrar de partido, os votos e o apoio dentro da Casa migram na direção do Executivo e os partidos dispõem de poucos instrumentos para manter um mínimo de fidelidade partidária. Essa prática também enfraquece o Legislativo.
Podemos ir além: nossas leis e cultura política concedem supremacia ao Executivo, tornando o Legislativo pouco relevante. No Brasil, o Executivo pode legislar diretamente, através de medidas provisórias, ou propor legislação que raramente é rejeitada. O contraste é grande, por exemplo, com os Estados Unidos, que levam o equilíbrio entre os poderes a sério. O Executivo não pode apresentar projetos de lei diretamente; só pode fazê-lo através de seus legisladores. Comparativamente, os legisladores brasileiros quase não legislam.
Assim, olhar para a amnésia eleitoral como um problema do eleitor ou mesmo da pobre ou inexistente relação entre o eleitor e o eleito, conduz à condenação dos dois. É injusto, porque a amnésia varia com a legislação e as instituições políticas, eleitorais e partidárias. Não podemos julgar e apedrejar eleitores se o sistema dificulta a identificação partidária e reduz o Legislativo à condição de coadjuvante político.
Tem jeito! Mas o jeito passa pela reforma política.
GLÁUCIO ARY DILLON SOARES é sociólogo.
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