Durante o seminário Crise Econômica Internacional, promovido pelo Ipea e Cepal, aconteceu o inusitado: economistas vinculados aos organismos oficiais propuseram forte ação de intervenção estatal na economia para impedir o colapso do sistema financeiro, como forma de minimizar os impactos da crise no Brasil e no mundo. Ainda, propugnam uma nova forma de regulação do sistema financeiro internacional e medidas contra o protecionismo.
As teses defendidas insurgem contra o receituário neoliberal em voga por um bom par de décadas trombeteadas aos quatro ventos pelos ventríloquos de plantão. Foram anos de um massacre doutrinário de pensamento único cantando loas às virtudes eloquentes das forças livres do mercado capaz de se autorregular encontrando em um ponto mágico o ajuste da oferta e demanda, gerando a prosperidade e emprego e renda. Enfim, o mundo mudou e a autocrítica veio a galope. Mas, como sempre, foi necessário que o ladrão arrombasse a porta para que ela fosse consertada. Apesar dos ouvidos de mercador não foram poucos economistas que tiveram a lucidez de enxergar uma crise anunciada, diante dos desacertos e descaminhos de um processo exacerbado de acumulação financeira e seu descolamento da economia real.
A eclosão da crise do capitalismo financeiro não ocorre pura e simplesmente por conta da inadimplência do sistema hipotecário americano. Ela é a gota d’água de uma crescente deteriorização da economia americana, cuja inflexão ocorre no final dos anos 60 apontando déficit crônico na sua contabilidade nacional.
A desregulamentação dos mercados, a diminuição do tamanho do aparelho de Estado com o seu corolário perverso das privatizações, a inserção forçada das economias nacionais no processo de globalização constituem a face obscura de uma doutrina econômica que estabelecia como dogma a única alternativa de desenvolvimento para os países emergentes. Propostas de desenvolvimento que não se circunscrevessem nos cânones das teses neoliberais eram desconsideradas. Não havia outro caminho que não fosse o ditado pelos organismos financeiros internacionais e o Bird, BID e FMI acabaram por impor suas razões e métodos. Keynes, juntamente com os economistas que defendiam teses desenvolvimentistas, foi enterrado com toda pompa. Em suas lápides não faltaram assertivas denunciando o caráter nostálgico de suas teses apropriadas a uma realidade que não existia mais e devidamente carimbada de forma deselegante como dinossauros.
Hoje, quando economistas de vários matizes retomam algumas teses keynesianas, tais como uma nova forma de regulação do sistema financeiro internacional, é importante esclarecer que qualquer mudança que se faça tem que necessariamente mexer na correlação de forças que comanda as decisões dos organismos financeiros internacionais. Ou seja, naquela época, a potência hegemônica conseguiu impor os seus interesses e, agora, evidentemente, se bem que em outro momento histórico, vai se reproduzir o mesmo embate que Keynes enfrentou em 1944, quando culminou com a criação do Acordo de Bretton Wodds. Keynes tomou uma posição radical em favor da administração centralizada e pública do sistema internacional de pagamentos e de criação de liquidez. Sua convicção era de que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial”. Keynes propunha a criação de um Banco Internacional e de um Fundo de Estabilização com poderes e recursos muito maiores do que acabou por se constituir com o FMI. Um organismo internacional dessa envergadura era necessário para que pudesse estabelecer o controle do movimento de capitais para preservar a estabilidade das taxas de câmbio e a efetividade das políticas monetárias nacionais, como descreve Belluzo nos vários artigos que nos últimos anos escreveu sobre Keynes. Na realidade, a visão de Keynes era internacionalista, preocupado com um ajuste global da economia mundial.
Contudo, as propostas de Keynes bateram de frente com os interesses do sistema financeiro dos EUA. Castrado o caráter internacionalista da proposta keynesiana, na prática, acabou por significar a entrega das funções de regulação de liquidez e de emprestador de última instância ao Federal Reserve, o Banco Central dos EUA, conforme conclui Belluzo. Tudo que a potência hegemônica queria.
Portanto, cuidado com os economistas convertidos tardiamente ao keynesianismo. No calor da crise se apegam a teses que esconjuraram irrefletidamente, sem uma autocrítica necessária.
Por Fernando Safatle economista
Por Fernando Safatle economista
Nenhum comentário:
Postar um comentário